domingo, 8 de junho de 2008

A Constatação





Esse conto "A Constatação" é de Alessandra Mascarenhas, tive a oportunidade de organizar duas de suas exposições "Varal da Literatura", na abertura contamos com a performance dos atores Marius Fartes e Angela Maria.
A exposição é muito bonita e diferente, os trabalhos (em papel reciclável , confecção de Adriana do "Papel em Si") , são colocados em "varais" e presos com prendedores de roupas coloridos (muito original ...)
Gosto muito do trabalho da Alessandra, para saber mais acesse o site: http://www.varaldaliteratura.ale.nom.br/ .



Perdi a noção de uma vida normal: enlouqueci. Mas o que seria uma vida normal? O que seria a loucura? Não tenho a menor distinção sobre elas. Ser normal é aparentar normalidade? É não vestir a camisa no avesso, usar sapatos iguais nos dois pés, é trabalhar direito oito horas por dia num emprego medíocre, pagar a prestação do carro, a conta de luz, o supermercado, é amar uma mulher só, é ter filhos, ter objetivos na vida, sonhos, decepções e tantas outras coisas?
E ser louco? É não ter um pacto com o óbvio, é beber até cair, tomar chá de cogumelo, deixar a chuva entrar pela janela de madrugada molhando o carpete novo da sala de jantar, é andar no parapeito da janela do vigésimo andar de patins, é tirar a roupa no meio da avenida movimentada às seis da tarde, é amar a todos, sejam homens ou mulheres, ou cachorros ou gatos?
Sinceramente não sei distinguir, mas creio que enlouqueci. Não tenho certeza, mas é isso o que ouço o dia inteiro...coitado, tão moço, ficar assim louco...que tristeza o destino desse pobre homem...a mulher foi embora, não agüentou sua loucura e agora está assim perdido.... Deve ser verdade, porque as pessoas normais parecem sempre ter razão.
Minha mulher foi mesmo embora, e levou consigo meus dois filhos, além do cachorro e dos móveis da casa. Só sobrou minha cama e um quadro horrível na parede da sala. É um rosto, o quadro. Acho que meu rosto. Tem uma expressão esquisita, uns olhos esbugalhados e uma boca curvada para baixo, amarga. Parece a minha cara. É, cara de louco.
Larguei de meu trabalho, não tenho dinheiro, não pago mais contas, deixei de tomar banho, escovar os dentes, não sei o que anda acontecendo lá fora, porém presumo que não seja nada de bom. Só como quando a Isaura, a velha empregada de minha mãe, me traz algo. Ela tem a chave de casa. Entra, faz meu prato e eu como bem. A comida é gostosa. Depois, a Isaura me dá um beijo na cabeça, recolhe meu prato, deixa a moringa com água fresca e fecha novamente a porta atrás de si. E eu, alimentado, aproveito melhor a minha loucura.
Às vezes passo os dias só dormindo, noutros acordado. Nunca olho pela janela. As cortinas ficam sempre cerradas. À noite não tem luz, já que não pago a conta faz tempo. Tem horas que danço. Danço muito uma música imaginária, depois choro ou rio. Penso bastante, coisas ilógicas, fantasias. Vivo num mundo meu, paralelo. Acho que um mundo feliz. Não tenho saudades da minha mulher, nem de meus filhos. Já esqueci seus rostos e suas vozes. Gosto de ficar sozinho.
É doutor, foi a Isaura que me fez vir aqui. Nesta manhã ela chegou cedo. Lavou meu corpo, me alimentou, escovou meus dentes, me vestiu com essa roupa muito limpa, penteou meus cabelos, me colocou junto a ela num táxi verde e me disse no caminho que me levaria à um psiquiatra, porque eu estava louco e era loucura me deixar assim. Ela me mandou contar como me sinto ao senhor. E eu obedeço a Isaura, porque a comida dela é gostosa e ela beija sempre a minha cabeça.
Não sou um louco rebelde, desses que atacam as boas senhoras ou esfolam os psiquiatras. Mas eu vou te contar a verdade que constatei dentro de mim. Fiquei louco porque cansei de ser normal. Cansei de pagar contas, de trabalhar, de usar a roupa do lado certo, de pagar a prestação do carro, de ter filhos chatos, sonhos e objetivos na vida. Cansei de valores, normas, de usar o mesmo modelo de sapatos nos dois pés, de viver assim.
Não sei em que dia enlouqueci. Fui gradual, eu acho. Não sei se vou voltar ao normal. Na verdade não sei se quero. Mas a Isaura pediu para eu vir aqui. Ela me falou que virei três vezes por semana. Não se preocupe com o dinheiro. Minha mão vai mandar à Isaura e ela lhe paga.
Não tente me curar, por favor. Me deixe assim, feliz na minha insanidade. Vamos só conversar. Quem sabe eu convença o senhor de que ser louco é muito melhor? Aí o senhor larga essa porra toda e vai morar no meu apartamento. Mas leva sua cama, porque eu não durmo ao lado de homem.
Tchau doutor, até quinta-feira.

0 Comments:

 
Template by CriaRecria - Todos os direitos reservados!