quinta-feira, 17 de julho de 2008

Então Final

Essa narrativa faz parte do Fanzine "A Fala da Girafa" (Renata Rocha, Bianca Nóbrega e Paulo Henrique). Lançamento no Depois Bar em 2005, linda festa com exposição de fotos de Renata Rocha e PH.
Narrativa com performance da atriz Angela Maria... e muito Blues com Marcos Boi e João Leopoldo!
Na ocasião, tinha uma certa semelhança com a personagem.
Gosto de sofrer por amor ...(rs)








Então eu estava ali. Sentada na pequena poltrona do ônibus. Reparava em cada cerca que corria, cada árvore amarela de outono, e cada sonho que deixava para trás, vida de despedidas , vida de pequenos e grandes adeus...

Peguei um livro que tinha na bolsa, tentei ler, tentei pensar em qualquer coisa e você ali tomando todo o lugar, tomando todo o ar do meu pulmão e ainda por cima me fazendo sentir uma dor tão grande no peito que chegava a me dar intensas tonturas. Parei com a leitura, parei com a tentativa de te esquecer, já sei que não sou capaz, já sei que você, como sempre, é mais forte do que eu. Você sabe, nunca consegui te olhar nos olhos e ser menos frágil, você sempre com seu sorriso condenando minha inocência e eu sempre com minhas desculpas por não a mulher que você sempre descreveu em seus discursos.

Acho que seria bom conversar com a passageira que viaja ao meu lado, mas logo desisto dessa idéia idiota, essas meias palavras que nada dizem e ainda nos causam um sentimento bestial de gentileza falsa, de bondade pobre...

Se ainda fosse possível dormir... Dormiria o resto da eternidade, dormiria o tempo necessário para levantar noutra vida e não ter essa lembrança amarga do teu sorriso lindo, das tuas mãos correndo meu corpo, do gosto que, por mais que me embebede de café , cerveja, cigarro, cachaça, não sai da minha boca, é você como um espírito branco percorrendo o corredor do ônibus, de ponta cabeça, pendurado no retrovisor, posso ver inclusive tuas costas pelo espelho. E o motorista nada diz? Devia ele te dar uma bronca daquelas, saia daí! Me deixa em paz! E como você sabe me perturbar e me irritar e me dizer tudo o que me faz chorar sem uma só palavra.

Resolvo tirar os sapatos, resolvo tirar a blusa e me entreter com o frio do ar condicionado. Recoloco a blusa, os sapatos, fecho os olhos e ouço a tua voz. Não é possível! Contenho o meu susto e ali está você de novo, agora sentado com uma passageira alta e com grandes lábios . Como eu odeio quando você faz isso, repete com outras mulheres os gestos que eram nossos, que eram só meus! Aquele teu jeitinho de tocar de leve nos joelhos pra falar. Viro-me para ver as tais das árvores que agora não têm mais folhas, deve ter passado tanto tempo aqui ...Tenho medo de olhar de novo para a mulher dos lábios grandes. Mas agora você está cantando com um hinário aberto, num coral de cem mil pessoas, a música infeliz, os olhos fechados, as minhas mãos tentando toca-lo e os gritos agudos das mulheres, um cavalo muito veloz ao lado do ônibus, as mãos do motorista buzinando tentando tirar esse coral imenso do meio da pista e sua voz e tuas músicas preferidas, e teus discos redondos girando, girando, o cavalo branco, o motorista, a tua culpa girando com os discos, minha maneira de te pedir desculpas pelo meu ciúme, a tua maneira de dizer que não me ama, e aquela coral, aquela coral, aquelas vozes todas unidas com a gente naquela tarde de inverno, naquelas noites de indecisão, naquela madrugada ouvindo aquela mulher cantando e cavalgando num enorme cavalo branco, e agora a sacolinha timbrada com o meu vômito verde, despejando de uma só vez todo meu sofrer, toda minha náusea por ver sempre o teu mesmo olhar condenando minha inocência que acabei perdendo nessa nossa loucura, talvez num desse corais... talvez no girar de um desses discos, não sei ... talvez ainda esteja em mim, escondida, a inocência ... a inocência que me aproximou de você e me fez a mulher mais feliz desse ônibus, mais que essa dos lábios grandes, mais do que a japonesa insossa e aquela da padaria, tudo porque eu só consigo entender tua culpa, tuas músicas, enfim, tudo porque não sou capaz de descer desse ônibus e acreditar que é preciso esquecer os sonhos e continuar caminhando pra frente.

(Bianca Nóbrega)

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