quarta-feira, 29 de junho de 2011

Amanhecimento

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam a dura parede.
Nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara, nossa noite está acostumada.

(Elisa Lucinda)

domingo, 26 de junho de 2011

Não és os Outros



Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
Teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante.


(Não és os Outros - Jorge Luis Borges, in "A Moeda de Ferro"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Teus olhos



Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

(Fernando Pessoa, in "Cancioneiro")

domingo, 19 de junho de 2011

Pequenos Milagres

A gente nem percebe, mas pequenos milagres acontecem a toda hora.
O estímulo de uma palavra amiga, a cumplicidade de um sorriso,
a sutileza de um gesto...
Essas são pequenas coisas que podem mudar o nosso dia.
E sem sentir, a gente também acaba fazendo milagres por aí também.
Sabe aquele conselho, aquele toque no amigo que precisa de ajuda?
Pois é, parece bobagem, mas a gente pode transformar o humor de alguém
com um simples carinho.
E quantas vezes nós mesmos não experimentamos pequenos milagres?
O elogio inesperado de um colega no trabalho.
O telefonema do filho que está longe.
O resultado feliz de um exame de saúde.
O doce bom na sobremesa.
A folga pra ir à praia.
O caminho sem engarrafamento.
Pequenos milagres são porções de alegria
que a gente vai ganhando ou doando todos os dias.
São pedacinhos de cor que enfeitam a alma.
São trechos de música que acalmam o coração.
Por menores que sejam os resultados, por mais anônimos que sejam os sucessos...
Os pequenos milagres precisam existir
pra que a gente não esqueça nunca do milagre maior de estarmos vivos.


(Lena Gino)

sábado, 18 de junho de 2011

Lucidez


Eu gostaria muito de ter o direito, eu também,
de ser simples e muito fraca, de ser mulher...
Hoje cedo (...) desejei ardentemente ser a garota
que comunga na missa da manhã e tem uma certeza serena...
No entanto, não quero acreditar:
um ato de fé é o ato mais desesperado que existe
e quero que meu desespero pelo menos conserve sua lucidez.
Não quero mentir para mim mesma.

(Simone de Beauvoir)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Amor



O amor é feito de períodos muito curtos, prestações de nada. (...)
O amor é de momentos que não se espera onde vão ter,
onde surgem, é de segundos... segundos que gritam eternidade,
o amor é de general que repara por acaso na paisagem,
que inspeciona o que está frente aos olhos,
distraído, doses mínimas, as doses máximas matam,
rebentam mata-ratos, rebenta-bois, lá diz o povo.

(Ruben Andresen Leitão)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Desejo e Ironia

Foto by Rafael W Araújo


Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.



(Ana Cristina César)

domingo, 12 de junho de 2011

Ora até que enfim

Ora até que enfim,
perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.
Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...
Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a sarapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!
Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução.
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!
Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão
de cada assunto resolvido em vários
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que,
se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...

(Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa)

Porque


Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,
Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios
Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,
Por que não me libertas do teu jugo,
Por que não me convertes em rochedo,
Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,
Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer?


(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Sinto

Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.


Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.

(Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos' Tradução de Oscar Mendes)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Mora um no outro



Fechei os olhos para não te ver
e a minha boca para não dizer...
E dos meus olhos fechados
desceram lágrimas que não enxuguei,
e da minha boca fechada
nasceram sussurros e palavras mudas que te dediquei...
O amor é quando a gente mora um no outro.


(Mário Quintana)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Leitor


Nós temos sempre necessidade de pertencer à alguma coisa; e a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, e neste caso, a língua com que se escreve? Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás e começar do princípio, e poder ler os primitivos e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação, transformando-se numa mina inesgotável de beleza e valor.

(José Saramago)

 
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